O contorno da silhueta de um urso em luz neon de um verde claro cativara a atenção de Timbete, que caminhava compassadamente com o olhar fixo na imagem que se destacava efusiva em meio ao breu da noite. Fazia parte da fachada de um bar, estilo cawboy norte americano. Parou diante da fachada a mirar o "urso", nada pensava,apenas observava. A noite era fria mas havia algum movimento de pessoas que passavam, entravam e saiam do "bar do urso". Timbete resolveu entrar; na verdade "Timbete" era um apelido que ganhou quando jogava capoeira com os amigos da favela do Fundão, chamava-se Augusto e vestia-se de jaqueta e calça jeans, mais parecido com os frequentadores do bar. Ao entrar dirigiu-se diretamente ao balcão e sentou-se num banco alto, uma banda de cawboys tocava samba. Continuava alheio ao barulho e movimento interno. O atendente do balcão que parecia conhece-lo perguntou o que iria querer, não respondeu, sequer parecia ter ouvido. O atendente observou-o por alguns segundos e o deixou em paz. Apareceu Toninho, um grande, gordo e velho amigo: e aí Timbete! Tudo bem?! Olhou para Toninho serenamente e nada respondeu. Alguém que estava com Toninho perguntou o que houve, Toninho respondeu: Deixa ele...e saiu. De repente levantou-se caminhando para fora, parou novamente diante do "urso de neon". Imagens de luzes coloridas, lembranças de rostos amigos, alegrias e tristezas bailavam em sua mente. Voltou-se em sentido contrário ao bar e pôs-se a caminhar, agora rumo a um pequeno prédio no final da rua, de onde, da janela do seu quarto atentara para o "urso". Ia chegando e algumas pessoas o aguardavam ansiosas...era sua família; mãe, pai, suas irmãs e uma amiga da família que havia posado lá. Clara, a amiga,antecipou-se rumo a Timbete com intenção de perguntar algo, mas foi segurada por uma das irmãs que disse: Deixa ele! Timbete subiu a escadaria, entrou em casa e foi para o seu quarto, mirou mais uma vez o "urso de neon". Sua família que o acompanhara, parou diante do quarto entreolhando-se um tanto aliviados, Clara, a amiga, olha para Tânia, uma das irmãs de Timbete e gesticula com as mãos como quem pergunta: o que está acontecendo?!!! Tânia responde: Ele é sonâmbulo!!!
- Hélio Antonio Manfredo.

Escrita ex-perímetral.

Firo o papel, com meu lápis tiro de letra, bang, o mineral encontra o papel vegetal. Escrita fluida é como água, é só para matar a seda, por isso a trago pra junto do meu café, combustível fácil de fazer ideia. Por vezes me perco, mas é assim que é escrever por escrever, per come por vezes tentadas, tentadas erradas e certeiras. Como as julgo? Por instintos que foram meus erros aos poucos que entenderam a melodia, fluindo como café em mim.

Fragmento de dia.

Prestes a se restaurar, o hábito de ingerir café se revela ao público pelo meu andar certo rumo à balconista. Meus passos são alguns dos muitos que precisei executar durante a manhã, a cadência respeita a moral do local, numa velocidade média as de muitas outras instituições.
Dois reais em metal são extraídos do fundo de um dos compartimentos da carteira, em seguida a fecho gozando do estralo do botão. A regularidade na mudança dos valores torna desnecessário averiguar a tabela de preços. Sobra-me tempo para conferir se sou eu ou o caixa quem recebe atenção. O caixa ganha e torna visível o motivo da segunda contratação, que me atende chamando por "moço". Peço o café e fito seus olhos cansados da vida, já mortos não me dizem nada, se não são seus gestos rumo a outra máquina, talvez eu repetisse o pedido. - L.C.M.

O texto segue a linha.

Só tu, medíocre, faz parte da trama!
É preciso ter valores para para ver o justo e o injusto,
compartilhar a luta fazendo uso da carne dos homens.
Não ser capaz de transcender,
não ser imparcial.
É preciso não saber o que se está fazendo,
matar o amado e se arrepender.
O que é o valor se não o choro ou o grito?
Todo resto é irrelevante, não há adiante quando tudo é caminho,
por isso estar fadado aos valores é o que faz o ser humano. - L.C.M.

Um sonho

Fito seu rosto pasmo.
Como pode ser real?
Algo gélido me sobe por dentro,
empurra meu coração pela boca.
Como pode ser tão real?
Minhas firmes pernas, agora trêmulas como as de quem acaba de alcançar seu sonho.
Aliás, se não um sonho, o que mais?
Como ela pode ser tão real?
- L.C.M.
(original do dia 30/09/2017)
Hoje pude ver como a verborragia virou ganha-pão, como o jargão dita o que é verdade e o que é mentira, como a superexposição do óbvio é o método mais seguro para manter determinada posição no faz de conta cotidiano.

Na verdade, o real é raro, e só aquele que compartilha do joguinho não é capaz de ver o desespero expresso em reação à dúvida legítima, aquela que desvela o autoritarismo mantido pelo discurso relativista bonitinho. Afinal, não é o poder hierárquico que persiste quando tudo é relativo?

E é assim que a banda toca: os conflituosos questionamentos sobre a veracidade ou utilidade do conteúdo são esquecidos pelas conversas ocasionais sobre a festa do fim de semana. Não há mais profundidade; tudo se baseia em aprender frases de impacto, que serão moeda de troca em ocasiões específicas.

É nesse sentido que me agrada ver o feio, o errado, o chato, pois me dá medo como as pessoas sempre se entendem e completam os comentários umas das outras. - L.C. M. (texto originalmente publicado no dia 06.11.2016)

Vaidade

Aplaudiram o sábio que admitia não saber.
A empatia com a ignorância admitida do sábio só mostra o quão sofisticada é nossa vaidade. - L.C.M
Reconheço o previsível quando dou conta do meu conhecimento, reconheço o imprevisível quando dou conta da minha ignorância, reconheço o aleatório quando aceito minha ignorância, defendo o aleatório quando ignoro minha ignorância. LCM.
Parto do que vejo e encontro a constância. O concreto não me ilude, permanece previsível, o contrário é coisa frágil e, como toda ilusão, precisa mostrar a concretude de minha ignorância. L.C.M. (publicado originalmente em 16/09/2017)

Essência

Essência, dela nunca estive tão próximo como quando tão intensamente senti sua ausência. L.C.M
Poetas são solitários, suas palavras solidárias. Como paradoxos não existem, há sempre quem contextualize: um poeta quis um dia ser como os outros, começou descrevendo quem os outros são e, desde então, é apenas poeta, mas os outros não - L.C.M.

Gigante maquinaria

"Pouco do quero e posso, muito do devo e ponto" é logo na testa do povo, principalmente nos rotos embotados que esperam o ônibus na esquina. A ofegância constante, o peito espremido, o ar rarefeito, a sufocante pressão dos cargos que com os corações conflitam. O pó do atrito daquilo que engrena essa gigante maquinaria é vermelho sangue e espirra como artéria ferida. A máquina funciona independente das particularidades do homem, o sangue que espirra é daquilo que lhe fornece energia, a pilha de ossos e carne que o ônibus leva para queima dia a dia. - L.C.M.